2007-10-30

"O “Dogma 2005” explicado às crianças (em 30 passos simples)"

1. Tu não és um artista, és uma pessoa.
2. Não penses que vais fazer uma peça sobre o “amor”; pensa que vais fazer uma peça, apenas. E podes acreditar que isso é mais do que suficiente.
3. Espera que a “ideia” (seja lá isso o que for) venha ter contigo. Não corras atrás dela feito totó. Em vez de dizeres “Preciso de ter uma ideia”, diz “Preciso de deixar de ser totó e ir mas é beber uma cerveja”.
4. Ou seja, sê preguiçoso, e orgulha-te disso. Tudo o que procuras está no contexto à tua volta. E se fores realmente “justo” com esse contexto, perceberás que o que procuras está mesmo espetado à frente do teu nariz. Relaxa. Não precisas de procurar muito mais.
5. Porque vai ser difícil acreditarem que o que dizes é verdade, documenta tudo o que te acontecer daí para a frente: fotografa, filma, escreve, cria mnemónicas, inventa maneiras de fixares as coisas e resgata-as da sua morte anunciada.
6. Diz sempre a verdade, a ti próprio primeiro, e aos outros depois. Mais do que um artista, és um antropólogo, um etnólogo, um historiador, um cientista, um investigador. Não, não és um político, nem um publicitário e muito menos um crítico de arte.
7. Faz muitas perguntas, sim, mas sem esperar respostas.
8. Nunca penses em resultados finais; produz resultados à medida que fores vivendo as situações, sem teres propriamente consciência que em vez de estares em processo, o que tu estás é em resultado. Quem diria, hein?
9. Separar teoria de prática é o mesmo que retirar a frente ao verso da folha de papel. Leia-se: é impossível. Por isso, mais vale desistires.
10. Idem para a separação entre processo e resultado.
11. Idem para a separação entre pergunta e resposta.
12. Esquece tudo o que te disseram. Faz tábua rasa, folha branca, começa tudo de novo, ou então começa tudo outra vez.
13. Não queiras ser mais giro/interessante/importante que o teu projecto. Deixa-o ser/viver de acordo com as suas próprias regras. Lá porque gostas muito de azul, não vais logo a correr pintar a mesa de azul, a menos que te caia uma lata de tinta azul em cima da cabeça, antes de tu sequer pensares que poderias ir a correr pintar a mesa de azul ou de outra cor qualquer.
14. Ou seja, aceita as coisas como elas são; não tentes torná-las melhores, mais giras, mais interessantes ou mais importantes. Lembra-te que o melhor não é necessariamente bom, já dizia o outro.
15. Todas as pessoas que se cruzarem contigo — espectadores potenciais, efectivos, especializados, ou não, incautos, interessados, desinteressados, e etc. — fazem parte do teu contexto. Não as elimines, portanto, inclui-as e dá-lhes poder para mudarem o teu projecto. Leia-se: dá-lhes poder para te mudarem a ti.
16. Não obstante: esquece lá essa coisa abominável da “interactividade”. Os meninos se quiserem “brincar aos teatrinhos” podem sempre ir à feira popular. Não lhes dês tarefas, responsabiliza-os. Se eles não gostarem, podem sempre ir embora.
17. Ou seja, o teu trabalho é “fazer” um espectáculo. Não é “dar” espectáculo.
18. Ah! E nada de mistérios! Diz tudo o que há para dizer. E di-lo de uma forma rápida, concisa e simples. Nada de esconder pormenores, desfragmentar narrativas, deturpar a cronologia ou criar ilusões espácio-temporais. Antes de seres artista, és jornalista, a quem coube comunicar um evento de uma maneira de tal modo simples, que até a velhinha de Cascos de Rolha (que não foi à escola), irá perceber. Lembras-te do “Quem, Onde, Quando, Como, Porquê, Para Quê?” É isso.
19. E já agora: tu não vais fazer um “vídeo”, nem uma “fotografia”, nem um “texto”, nem uma “dança”, nem um “teatro”, nem uma “instalação”, nem um “happening”, nem um “projecto transdisciplinar”. O nome da tua coisa é o nome que a coisa tem. E os meios são meios. Os meios não são fins!
20. Se te sentires perdido e sem estrutura de trabalho fixa onde te ancorares, não te preocupes. Quem é que disse que a metodologia tem que ser encontrada no início? Respira fundo, conta até 10, imagina que és grande montanha e segue o teu caminho.
21. Ensaio?? Esquece lá isso...
22. Autoria?? Não, mediação! Entre quem está ali para conhecer e aquilo que tu tens para dar. A conhecer, claro. E onde se lê “dar a conhecer”, leia-se: comunicar ao mundo a tua descoberta científica. Foste tu que a descobriste, está certo, mas tal não significa que é a ti que ela pertence.
23. Sim, e é da tua vida que estamos a falar. Não vale a pena fugir com o rabo à seringa.
24. Sim, e é de exposição pessoal que estamos a falar. Idem…
25. Sim, e é de anulação da liberdade artística que tu julgas possuir — em prol de uma nova (e mais autêntica) liberdade artística que tu nem sonhavas que tinhas — que estamos a falar. Idem…
26. Sim, e este projecto tem que te marcar. De facto. E para sempre.
27. E isto só é artístico porque tu disseste que era. A forma do “artístico” não interessa para nada. O compromisso de que o que vamos ver a seguir é “artístico”, sim, interessa para tudo.
28. Ah! E esse copo de plástico que tens na mão é para com ele beberes, não é para o pores na cabeça a fazer de conta que é um chapéu, certo?
29. E depois, das duas uma: ou segues estas regras ou não segues estas regras. Não percas tempo a discuti-las, a rebatê-las, a desconstruí-las, a concordar ou a discordar com elas. Não vale a pena. É perda de tempo. E desgaste desnecessário de neurónios. Mas também não faças disto a tua religião, não imprimas o logótipo numa t-shirt, nem faças uma tatuagem. Não penses sequer em criar um partido político ou um movimento artístico com sotaque e retórica pós-modernos! Não! De nada te irá valer convenceres os outros que isto é que está certo. Porque nem está nem deixa de estar. Não é aí que reside o “interesse”. Pensa que és um mero funcionário do “Dogma”: picas o ponto, entras, fazes, depois voltas a picar o ponto e vais embora para casa.
30. No fim, vais perceber que fizeste “arte”, sem ter pensado de antemão que era “arte” aquilo que estavas a fazer. Não é fantástico? É que às vezes, o making of é mais importante que o filme. Outras vezes, o making of é mesmo o filme. São estas as que interessam.


(texto enviado por Rogério Nuno Costa aos participantes do projecto "A Oportunidade do Espectador" que vão apresentar o seu projecto Dogma em Torres Vedras, de 1 a 3 de Novembro 2007)

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